19.5.09

Do que era previsível e do que não era


Amanda Mabel


"De algum modo já aprendera que 

cada dia nunca era comum, era sempre extraordinário."

~Clarice Lispector


Era de se esperar que alguém com a má fama que eu tenho não valesse grande coisa.
Era de se prever que seria difícil lidar com alguém que já empurrou outra pessoa de uma escada
Era de se prever que eu não fosse assim, fácil de lidar.
Era de se esperar que alguém com tantas variações de humor fosse mesmo imprevisível
Mas não era de se esperar, em momento algum, que você fosse gostar de mim mesmo assim.
Você devia prever que meu sarcasmo e minha postura irônica fossem te ofender um dia
Você devia ter reparado que eu tenho essa mania de dar minha opinião, sobretudo quando não me pedem.
Não é possível que você não tenha notado minha falta de tato com as palavras e meu pavio curto com as pessoas
Eu sou tão chata... Tão exigente, tão intolerante, ignorante...
De onde você tirou a idéia que eu sou isso tudo que você descreve?
De onde você viu tanta coisa boa em mim?
Eu tenho espelho e nunca vi esses detalhes que você me aponta e insiste em dizer que não é miragem, utopia...
Me explica como você acha graça do meu mau humor? Me explica o que você pensa quando enxerga os meus defeitos? Você os enxerga, não é?
Ei, você é ousado! Diria até corajoso... Se eu fosse uma outra pessoa, não me encarava desse jeito. Que jeito? Desse aí que você faz!
Eu não olharia para mim dessa maneira, com esse olhar de quem é capaz de me entender, com essa expressão de quem me decifra...
Não, a verdade é que você não me decifra! Você finge! E finge bem, tanto que quase acredito.
Viu? Eu disse "quase".
Talvez você ache que eu sou uma boa pessoa, mas olha, eu nunca fui! Nunca fingi que era e nem me esforcei pra ser.
Sou uma pessoa prática, gosto de ser direta porque não gosto de rodeios, não sei andar pisando em ovos... E quando sou obrigada, quebro tudo pelo caminho, porque não sei ser sutil. Aliás, sou tão sutil quanto pode ser um elefante numa loja de cristais.
Não faço marketing de mim mesma. Você percebeu? Pergunte dos meus defeitos que te mostro um a um, catalogados e separados em ordem alfabética.
Era de se esperar que você fugisse, que me desse as costas, que fosse embora... Mas você ficou!
Quase sinto vontade de te dar uns tapas de tão teimoso que você é!
O que você pretende com tudo isso? Acha que consegue me dobrar? Se me fizer barquinho eu navego pra longe do teu mar. Se me fizer balão eu pego fogo antes de tocar o chão. Se me fizer aviãozinho eu decolo pra longe do teu céu. Ainda acha que pode me dobrar?
O que você pretende realmente? Acha que pode me fazer perder o tom? A rima?
Acha mesmo que pode me fazer fechar os dedos na sua mão?
Era de se esperar que você pensasse que não. Mas você pensa que sim, não é mesmo?
Tudo bem, devo reconhecer que não sou assim, imune, a você. E eu reconheço que não sou fácil, sou quase um estresse, um teste de paciência.
Mas você tem um jeito difícil de entender e de me entender.
Era de se esperar que você percebesse que eu não sei falar a sua língua
Era de se esperar que você notasse que eu não vejo o mundo do mesmo modo que você
Mas já que você resolveu mesmo ficar... Vamos lá, me ensina?
  

3.5.09

Para Maria da Graça


~Texto de Paulo Mendes Campos


Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.
Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.


Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo , pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.
A realidade, Maria, é louca.

Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?"

Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.


A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!" O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas conseguem abrir uma porta bem fechada ou vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.


Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.


Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.

A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon" Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato.
Foi o que o rato perguntou à Alice: "Gostarias de gato se fosses eu?" 



Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! mas quem ganhou?" É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre onde quiseres, ganhaste.


Disse o ratinho: "A minha história é longa e triste!" Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance só é o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energeticamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: "Minha vida daria um romance!" Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.


Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo" Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.



E escuta a parábola perfeita: Alice tinha diminuido tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. 
E como tomar o pequeno por grande e grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom-humor.



Toda a pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.


Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá.A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas".


Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida:
É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.


Texto denso, tenso, com aquelas verdades irremediáveis que vez-em-quando precisamos ouvir/ler. Recebi por email da Guilherminda quando postei a última vez sobre Alice!
Tava querendo postá-lo no blog há tempos, mas eu ando meio sem tempo de vir/ficar aqui =/

Carolina! Na verdade se chama Ana Carolina e não gosta de ser chamada de Ana. Não revela a idade, mas todo mundo diz que aparenta bem menos. Fotógrafa e estudante de Jornalismo. Mudou de área depois de anos insatisfeita com a profissão. Carioca, apaixonante e implicante. Carinha de 8, espírito de 80 anos. Chata, mal humorada e anti-social. Gosta de rimas simples, de frases bobas e é viciada em café. Na vida passada foi um gato tamanha preguiça. Tem mania de ter manias, coleciona coisas inúteis e acha ridículo isso de falar de si mesma em 3º pessoa.

 
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