2.2.11

Acho tocante acreditares nisso

Foto: Carol Rodrigues


Eu só não vou até aí, porque o seu elevador não funciona. Juro. É só por isso. Se eu fosse até aí, com toda essa urgência que estou sentindo, iria dirigir feito louca. Poderia atropelar o vizinho com o andador ou a moça com o bebê. Poderia bater num poste, veja que perigo. Não, eu não bebi, mas dirigiria feito bêbada, embriagada dessa urgência que me confunde a visão e retarda os reflexos. Eu só não vou até aí, porque eu subiria essas escadas correndo, contando cada um dos degraus, pra depois perder as contas e esquecer o que eu queria te dizer. Eu subiria correndo e depois não sobraria fôlego para dizer "olátudobemcomovai". Você ficaria me olhando ofegante, descabelada e acharia que eu sou louca. Sou mesmo. Louca de pedra. E só não vou até aí, porque sei que os vizinhos de baixo reclamariam do barulho do meu salto no seu assoalho. Os vizinhos dos lados reclamariam da minha risada escandalosa. Eu falo alto. Eu rio alto também. Não sei do que os vizinhos de cima reclamariam, por isso não vou até aí: não quero descobrir. Como também não quero descobrir, que o livro que eu te dei ainda está na embalagem. Que eu não estou em nenhum dos seus porta-retratos, que você não tem abajur na mesa de cabeceira porque não gosta de ler na cama. Não quero descobrir do que você tem medo. Nem ouvir que o teu medo é meu. Já pensou ter que lutar com os seus monstros imaginários? Ahh, não! Eu não vou até aí, porque não quero saber que a sua janela está emperrada, que as cortinas são grossas demais, que o sol não vai bater na janela do seu quarto e que você não gosta do Renato. Eu sei, eu insisto nisso mais do que deveria. Mas como você pôde dizer aquilo sobre ele? Está vendo? É por isso que eu não vou até aí. Iria brigar mais uma vez pelo filho do Sr Manfredini. E quer saber? Tenho certeza que você não tem nenhum vaso de plantas. Aposto que você nem sabe ligar uma vitrola e que o seu apartamento faz eco de tão vazio. O seu sofá deve ser daqueles que afundam, seus travesseiros baixos demais e ainda por cima, uma descarga que não funciona. E sabe o que mais não funciona? Não te digo! Porque isso eu queria te dizer pessoalmente, urgentemente. É como uma fome. E falando nisso, aposto que você só tem comida congelada na sua geladeira e que você só mantém o peso porque sobe todo dia os malditos trinta e dois andares a pé. 
Olha... Eu só não vou até aí, porque o seu elevador não funciona. Juro que é só por isso.



*O título deste post é uma frase de uma música de Renato Russo

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Carolina! Na verdade se chama Ana Carolina e não gosta de ser chamada de Ana. Não revela a idade, mas todo mundo diz que aparenta bem menos. Fotógrafa e estudante de Jornalismo. Mudou de área depois de anos insatisfeita com a profissão. Carioca, apaixonante e implicante. Carinha de 8, espírito de 80 anos. Chata, mal humorada e anti-social. Gosta de rimas simples, de frases bobas e é viciada em café. Na vida passada foi um gato tamanha preguiça. Tem mania de ter manias, coleciona coisas inúteis e acha ridículo isso de falar de si mesma em 3º pessoa.

 
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